VIDA E PAIXÃO DOS SANTOS JULIÃO E BASILISSA
(século VI-VII)
Vida e paixão dos bem-aventurados mártires Julião e Basilissa e dos seus companheiros, que sofreram o
martírio na cidade de Antioquia; sendo Marciano governador, no sétimo dia antes dos idos de janeiro.
Graças a Deus.
Prólogo
Os bem-aventurados mártires, ao deixarem o século, confiaram-nos como galardão este presente hereditário, pois não puderam levar consigo os feitos das suas paixões: mas aos que lutam deixaram firme exemplo, para os errantes se tornaram via, para os cegos, luz, para os vacilantes a fé. Todos os sinais manifestos das suas virtudes claramente os colocam no seio da santidade. E desta arca da justiça,
pois, não sairá ninguém senão aquele que permanece descrente.
Quanto a vós que isto ouvis ou ledes, acreditai connosco que aos crentes tudo é possível. E por isso, sem qualquer hesitação, outra coisa não nos deixaram os mártires senão este bem hereditário para que o imitemos. E assim vos peço a todos os que isto ouvirdes ou lerdes que ouçais de coração atento quão grande glória é deixarmos o mundo e por estreita via seguirmos os passos destes santos, de sorte que ao lerdes os seus feitos compreendais que é verdadeiro aquilo que no Evangelho a Verdade declara, ao dizer "Bem-aventurados os que viram e acreditaram"
Ora nós, que vimos com os nossos olhos, escrevemos os feitos dos mártires, pelo que cremos que também a nós nos caberá alguma bem-aventurança. Quanto a vós, espera-vos uma glória melhor, vós que ouvis e acreditais que o Senhor pode cumprir nos seus santos o que sabeis aqui estar escrito. Não começarei assim por relatar já a paixão do bem-aventurado mártir Julião: mas não deixarei passar em silêncio o quanto se mostrou querido a Deus desde a infância. Ao ouvirdes agora isto, acreditai nas nossas palavras, para que acreditando conheçais qual é a recompensa da fé.
Vida dos santos Julião e Basilissa
Este bem-aventurado Julião, nascido de família nobre, era ilustre no século. Acolheram-no os seus pais como querida descendência, ele que era o filho único das suas entranhas. Embeberam-no em toda a doutrina e conhecimento, de sorte que não lhe faltava o engenho dialéctico nem o retórico, nem a sabedoria de todos os autores do mundo; e assim como bom atleta de Cristo a tinha cativa no tesouro do seu coração. E desse modo fazia uso do mundo, como se o não fizesse: lera, com efeito, o mestre de todos os cristãos, o apóstolo Paulo, quando dizia: "na verdade a aparência deste mundo passam". E para não perecer imundo com este mundo, mostrava-se de tal forma querido a Deus que cuidava ser estultícia a sabedoria deste mundo. Desejava, com efeito, estar sem preocupações na companhia de Cristo quando este mundo passar. Era de facto amante da fé, frequentando diariamente os portais da Santa Igreja; as celas dos santos, não passava um dia sem que as percorresse para visitar os santos de Deus. Como um bom negociante, guardava um tesouro no seu coração, imitando as acções de todos os eleitos, procurando nas virtudes de cada um a graça da santidade. Floria encerrada nas suas entranhas a perfeita caridade, aquela que expulsa para fora o temor, e de tal sorte cortara com todos os pecados e concupiscências do mundo que justamente bradava a Deus: "Enquanto estou neste mundo, peregrino ausente do Senhor". E porque queria esconder dos homens que desejava agradar a Cristo, ocultava o seu
propósito, ocultava também o santo desejo.
Julião é pressionado a casar-se
Como o vissem os pais unir-se com tamanho zelo de espírito aos cultores da religião cristã, chamam a si o venerável jovem e com estas palavras o exortam:
— Dulcíssimo e venerável filho nosso, ouve o salutar conselho dos teus pais, pois com espirituais palavras somos instruídos pelo venerável santo apóstolo Paulo, mestre de todos os cristãos, que diz: "Quero que os jovens se casem, que tenham filhos, que sejam pais de família, não dando ao maligno ocasião alguma" (parafraseando 1 Tim 5,14). Por isso te pedimos não só que nos obedeças, mas também que sejas conhecido como obediente à lei do Senhor.
A isto disse o bem-aventurado Julião em resposta aos pais:
— Não tenho vontade nem idade para fazer aquilo a que me exortais.
Retorquiram então os pais:
— Tens quase dezoito anos, como poderás pois justificar não te sujeitares ao casamento? Não queremos que te desculpes com o tempo. Na verdade queremos que sejas marido de uma mulher, de sorte que sendo concedida a geração de filhos, quando fores pai, te dediques a Deus com um só propósito: cessando ou postos em ordem os incitamentos da carne, quando te tiver sido dada uma mulher, com uma só vontade e com salutares conselhos, vos consagreis ao Senhor.
Isto iam dizendo os seus pais, para assim lhe despertarem a semente. É que já pensavam que a sua linhagem ia ter um fim se não despertassem nele a vontade da procriação. E como já não tolerasse os incómodos dos pais e abominasse as insistências de amigos e familiares, deu então o bem-aventurado Julião esta resposta aos que o tentavam convencer:
— Nem tenho a possibilidade de o prometer nem o poder de o recusar. Aquilo a que me exortais, encomendo-o ao poder do meu Senhor. Por isso vos peço umas tréguas de sete dias. De acordo com o que Ele se tiver dignado inspirar-me com salutares conselhos, assim de mim tereis resposta. Ao ouvir isto, os seus pais foram tomados de enorme desgosto e consumiam-se em pensamentos enquanto não chegava o dia estabelecido, aquele em que receberiam a resposta do filho.
Visão reconfortante
Ora o venerável rapaz passou aquele tempo em vigília e em orações dia e noite, pedindo ao Senhor que não o deixasse violar em ocasião nenhuma a prometida virgindade. Chegando pois a noite do sétimo dia, como o sono alcançasse o corpo macerado pelos jejuns, aparece-lhe o Senhor. Consola o fiel servo, fortifica a alma que lhe era querida. Ordena-lhe que cumpra estes preceitos e fala-lhe com tal advertência, dizendo:
— Levanta-te. Não temas e não abomines as insistências das palavras nem a vontade dos teus pais.
Receberás, na verdade, uma esposa que te não apartará de mim contaminando-te, mas permanecendo graças a ti virgem, a ti e a ela vos receberei virgens nos Céus. Na verdade, muita castidade me será, graças a vós, dedicada: muitos jovens e virgens graças ao vosso ensinamento e à vossa vida serão aprovados no exército celeste . Também te assistirei habitando em ti, para esmagar todas as voluptuosidades da carne e o inimigo que traz os desejos. E a essa que tu souberes ter-te sido unida, convertê-la-ei ao meu amor e fá-la-ei tua seguidora. E ali mesmo no quarto que vos foi preparado ver-me-eis com coros de anjos e uma incontável multidão de santos virgens de ambos os sexos, pois
aqueles a quem a natureza fez diferentes, uma só fé os faz em mim iguais — deles serás tu reconhecido como imitador.
Ao dizer isto, o Senhor tocou-lhe e disse:
— Tem coragem e o teu coração será confortado no Senhor.
Fortificado o venerável rapaz por estes prodígios, ergueu-se e pôs-se a dar graças ao Senhor, dizendo:
— Graças Te dou, Senhor, que perscrutas o coração e os rins26, que me apartaste da beleza e dos deleites do mundo, para me chegar junto a Ti de coração crente, ajudando-me e em mim reinando a castidade para aquilo que nem a vista viu, nem o ouvido ouviu nem ao coração do homem subiu27, aquilo que preparaste para aqueles que Te seguem com todo o coração. Tu que Te dignaste ser para mim via, ou antes, ser em mim verdadeiro caminho, e para aqueles que amam a castidade e abraçam a integridade da alma e do corpo. Tu sabes, Senhor, que desde o dia em que em Ti renasci até àquela hora em que Te dignaste chamar-me, nada antepus ao Teu amor, que nada desejo senão só isto: que
confirmes aquilo que sai da minha boca, pois acredito que começo então quando acabo.
Casamento de Julião e Basilissa
Terminada a oração, sai alegre do quarto. Retirando aos pais as tristezas com a alegria do seu rosto, diz-lhes:
— Eis que, tal como desejastes, farei aquilo a que me exortais, pois soube por preceito divino que o casamento não é para mim um pecado mas uma graça.
Rejubilam os pais com esperança na geração de filhos. Mais palavras para quê? Procura-se uma rapariga que lhe pudesse ser semelhante nas posses e não fosse indigna nos costumes. Com o auxílio da misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, que esta graça e este matrimónio ordenou, acha-se uma rapariga tal que pelas posses era rica e pela nobreza de linhagem igual, de nome Basilissa, a qual também ela se distinguia por ser filha única de seus pais. Faz-se o pedido, como é costume. Os pais da rapariga aceitam o pedido, e como é uso da nobreza determina-se o período de núpcias. Regista-se tudo o que é costume as tábuas matrimoniais conterem, marca-se o dia do casamento.
Ora o bem-aventurado Julião esperava o dia das núpcias como um bom atleta: vencido o desejo da carne, zelava por agradar ao Rei do Céu. Mais palavras para quê? Chegou o dia estabelecido para o qual as cidades vizinhas tinham sido convidadas para as núpcias. Cada uma destas cidades trouxera consigo para a luxúria do povo diversos divertimentos, para com eles excitarem os jovens na corrente do desejo. Soam as praças com o frémito dos órgãos e aqui e ali as vozes dos músicos. Dança uma multidão de virgens de cabelos frisados com ornamentos de ouro, a cujo canto também ajuntavam coros de suavíssima voz, de tal modo que se um homem fosse de ferro, seria derretido pelos deleites da luxúria. Entre tantas e tais fileiras de pagãos batalhava o atleta Julião, guerreiro de Cristo, e a ninguém manifestava os segredos do seu coração a não ser ao Senhor, de quem retinha a prometida esperança da vitória.
Do tálamo é trazida a noiva, toma-a ele com alegria. E, como se alegrasse no Senhor, mostrava-se alegre ao povo e no seu coração salmodiava ao Senhor, dizendo:
— Queima os meus rins e o meu coração30, Senhor, para que a antiquíssima serpente não suscite em
mim a guerra da sua luxúria.
Aproxima-se a hora de se dirigirem ao leito nupcial. Trazida a virgem, o venerável jovem, confiante no Senhor, entra no quarto. Tendo no quarto orado o bem-aventurado Julião, surgiu um tal odor de lírios e rosas que à virgem parecia que ela tinha sido posta num lugar como aquele em que costumam lírios e rosas primaveris oferecer o suave odor da graça aos que têm sede. Cai o silêncio da noite. Diz então a virgem ao jovem a si unido:
— Sinto uma coisa espantosa, a qual, se também tu sentes, não ma negues!
Respondeu-lhe o venerável Julião:
— Conta-me fielmente o que sentes.
Disse-lhe a virgem:
— Embora seja tempo de Inverno e por natureza a terra, grávida de todas as rosas e lírios, ainda não as tenha gerado, a fragância de todas estas flores neste quarto me deleita de tal sorte que, saciada por estes suavíssimos odores, me repugna não venha de todo a desejar a união conjugal.
Disse-lhe o bem-aventurado Julião:
— O suavíssimo odor que te apareceu não tem tempo nem fim: aquele que dá tempos aos tempos, que a cada tempo dá a graça para ministrar, esse é o Senhor Jesus Cristo, que é o amante da castidade, Ele que dará a vida eterna aos que guardam a integridade do corpo. Na verdade, se quiseres comigo aceitar os seus conselhos no sentido de O amarmos com todo o empenho e guardarmos um ao outro a virgindade que nos foi concedida, tornar-nos-emos neste mundo puros vasos d'Ele nos quais possa habitar. E com Ele reinaremos no futuro e não seremos separados um do outro.
A tais palavras respondeu a bem-aventurada Basilissa:
— E que melhor louvor existe do que, guardando a virgindade, alcançar a vida eterna? Visto que acredito que assim é, de modo a possuir o que anuncias, quero estar de acordo contigo para ter o Esposo eterno, o Senhor Jesus Cristo.
Isto dizia ela. Prostrando-se em oração, o bem-aventurado Julião arrojava-se ao chão, bradando e dizendo:
— Confirma, Deus, aquilo que em nós operas!
Ouvindo isto, a virgem fez a mesma coisa.
O casamento celestial
E eis que de súbito foram abalados os fundamentos do quarto, e uma luz inenarrável brilhou de tal maneira que os candelabros que estavam no quarto ficaram ofuscados pela grandeza daquela luz. E tal como foi escrito, para se cumprir o que foi dito: "Fomos feitos espectáculo para este mundo, para os anjos e para os homens";
— fez-se pois naquele quarto um grande espectáculo espiritual. De um lado sentava-se o Rei eterno, Cristo, com uma multidão de inumeráveis vestidos de branco, e do outro lado inúmeras multidões de virgens de ambos os sexos, das quais a gloriosa Virgem Maria detinha o primeiro lugar. Do lado do Rei bradava-se:
— Venceste, Julião! Venceste!
Do lado da Rainha bradava-se:
— Bem-aventurada és, Basilissa, tu que assim consentiste nos conselhos salutares e, rejeitando os enganos e os deleites do mundo, te apressaste na direcção da glória eterna!
E de novo do lado do Rei se bradava:
— Que sejam levantados do chão os meus soldados, que venceram a luxúria da velha serpente e, de coração empenhado, leiam o livro da vida eterna que foi posto na cama que se sabe ter-lhes sido preparada.
E a uma só voz responderam os que estavam sentados em ambos os lados:
— Amen!
E aproximando-se dois deles, vestidos de branco, tendo à volta do peito cintos de ouro e segurando nas suas mãos cada um uma coroa, ergueram-nos dizendo:
— Levantai-vos, pois vencestes e fostes contados no nosso número. Olhai para cima, e o que vedes na cama que vos foi preparada, lede-o e reconhecei que o Senhor é fiel nas Suas palavras.
E, segurando-lhes as mãos, levantaram-nos. E eis que em cima estava posto um livro sete vezes mais brilhante do que a prata, escrito com letras de ouro, e em redor da cama quatro anciãos que tinham nas suas mãos frascos cheios de aromas, ressumando um odor variado. E respondendo um deles disse:
— Eis que nestes quatro frascos está contida a vossa fé. Deles, na verdade, todos os dias ascende para a presença do Senhor o odor da suavidade. Por este motivo sois bem-aventurados, pois vencestes os falsos deleites do mundo, avançando em direcção ao que nem a vista viu, nem o ouvido ouviu, nem ao coração do homem subiu. Avança agora, Julião, e lê o que ordena a Trindade una.
E avançando, começou a ler assim:
"Julião, que por amor de mim desprezou o mundo, seja contado no número daqueles que não se
conspurcaram com as mulheres. Basilissa, por seu lado, que se reconhece ter sido de coração íntegro
casada com ele, seja contada no número das virgens nas quais está a Virgem Maria, detendo o primeiro lugar.";
E dizendo isto fechou o livro. De novo disseram os milhares de milhares de anjos exultantes a uma só voz:
— Ámen.
E de novo lhes disse:
— Neste livro que vedes estão registados os castos e os sóbrios, os verdadeiros e os misericordiosos, os humildes e os pacíficos, os que têm caridade não fingida, os que toleram as adversidades, os pacientes na aflição e os que nada antepuseram ao amor de Cristo — nem parentes, nem pai, nem mãe, nem mulher, nem filhos, nem campos, nem propriedades, nem outras coisas que são neste mundo os impedimentos da alma — e os que em seu nome não hesitaram em entregar as suas almas à morte, em cujo número também vós merecestes estar.
E logo a visão que estavam a ver lhes foi retirada da vista. Então, exultando no Senhor, os bem- aventurados virgens passaram em vigília o que restava da noite, com hinos e cânticos. Mais palavras para quê? Clareou o dia. O povo que acorrera era levado pelo delírio da alegria. Esperavam ver aqueles a que se haviam juntado no século, não sabendo nem entendendo que fora celebrado um
santo mistério. E começaram a frutificar em espírito, não na carne, e de tal sorte ocultavam o mistério da graça divina que lhes fora conferido, que só do Senhor Jesus Cristo e dos santos anjos era sabido o que faziam. E porque o Senhor não privou de bens os que andam na inocência, de tal sorte agiu o divino dom que num curto espaço de tempo os seus pais partiram desta vida, deixando digna prole pela qual não seriam privados do Reino dos Céus. Eram, na verdade, também eles fidelíssimos cristãos. Então, os bem-aventurados virgens, tendo-lhes sido concedido tempo, recebem alegres do Senhor a sua licença, eles que haveriam de possuir a palma da vitória para poderem do mundo terreno
passar para as alturas dos Céus. E porque é muito difícil narrar por ordem a sua venerável vida, narremos em seguida apenas algumas de tão grandes obras.
Fundação de mosteiros
Concordam em que não estão preocupados apenas com a sua salvação, mas tomam também o cuidado de muitas almas. Dividem as casas, e duas lucernas são postas num candelabro nas alturas, às quais o Rei eterno ministra o azeite da alegria. E derramando por meio deles a santa doutrina nos corações ignaros, com o Verbo ignífero queima os abrolhos e os espinheiros dos pecados. Por toda a parte aquela suave voz do Senhor convocava pela boca dos santos Julião e Basilissa, dizendo: "Vinde a mim vós todos que sofreis e estais oprimidos, e eu far-vos-ei descansar";. Fundam santos mosteiros nos quais arrebatavam searas de almas da asfixia dos espinheiros e dos abrolhos do mundo. Não havia
quem pudesse ouvir uma palavra da boca de São Julião e se demorasse a converter-se ao Senhor. Deixavam, pois, os maridos as suas mulheres, os filhos os seus pais, os noivos as suas noivas. Abandonando também como esterco o património terreno em troca do amor da vida eterna, abundando em delícias e distribuindo as riquezas pelos pobres, tomavam o caminho estreito, e nenhum deles olhava para trás, a mão posta no arado. E o bem-aventurado Julião era pai de uma santa congregação de cerca de dez mil monges. E tal como está
escrito; "uma geração vai e uma geração vem";46, tantos quantos partiam para o Céu, assim tantos se convertiam ao Senhor. Nem se podia contar a quantidade de tantas almas que, por intermédio de São Julião, perfeitamente partiram para o Céu. Igualmente, por intermédio da bem-aventurada Basilissa, multidões de virgens e mulheres libertadas das imundícies do século, almas castíssimas, eram enviadas para o Céu. E estavam com o bem-aventurado Julião os santos convívios dos santos, mas também por intermédio de santa Basilissa refulgia nas virgens e nas mulheres a mais excelsa palma da vitória da castidade. E porque então de todos se tornou conhecida a sua venerável vida e observância, com a ajuda do Senhor foi ela por nós declarada. Agora, no entanto, avancemos para aquele tempo em que alcançaram o martírio e declaremos as suas gloriosíssimas palmas47.
Martírio de Julião e companheiros
Ao ver isto, o governador convoca os magistrados da cidade e ordena que sejam inspeccionadas todas as prisões e levadas para o anfiteatro todas as pessoas dignas de morte. Determina ainda que os santos de Deus sejam degolados entre pessoas desonradas e sacrílegas. Então, diz São Julião, com os santos seus companheiros no martírio:
— Graças a Ti, Cristo, que nos conduziste até esta hora da salvação.
Então o venerável rapaz com a sua santa mãe disse ao governador:
— Conhece bem as nossas faces, que neste século graças a Cristo assim vês sem alteração. Na verdade, tu com a tua perfídia tentavas impor-nos a tua fealdade, mas a graça e a piedade de Cristo revestiu-nos da grande glória da beleza, para que naquele dia saibas que estamos em glória, quando tu estiveres no castigo.
O cruel Marciano ordena que os santos sejam misturados com criminosos, e mandando introduzir
executores, ordenou que os santos fossem mortos à espada.
Mal isto foi feito, logo se deu um grande terramoto, a ponto de quase um terço da cidade ter sido arrancado dos seus fundamentos. E não foi permitido ficar de pé nenhum lugar no qual se soubesse haver um ídolo. Houve relâmpagos e trovões e um granizo intolerável que consumiu a maior parte dos descrentes. O próprio Marciano escapou semimorto. Não muitos dias depois expirou, fervilhando de vermes.
Sepultura dos mártires e a fonte miraculosa
Nessa mesma noite, vieram gentes cristãs e os sacerdotes. Não reconhecendo as relíquias dos santos no meio da multitude de cadáveres, puseram-se de joelhos e fizeram uma oração. Apareceram-lhes sob a aparência de virgens as almas dos santos. E pondo-se cada uma delas sobre o seu recipiente corporal, assim recolheram as relíquias dos santos.
A graça do Senhor determinou que o sangue deles coalhasse como pão branco à volta de cada um deles, de sorte que a terra não ousava abrir a sua boca para receber o sangue dos santos, pois já se saciara com o sangue dos criminosos. Levando os santos corpos, os sacerdotes sepultaram-nos na santa igreja, sob a sacrossanta cobertura do altar.
Dali ordenou a piedade do Senhor que jorrasse uma fonte inesgotável, com cujas águas o sacrossanto baptistério é inundado. Nesse lugar são abundantemente concedidos aos crentes tantos divinos benefícios, que se alguém chegar cheio de fé e crença logo alcança a cura, qualquer que seja a enfermidade de que padeça. E não calarei aquele milagre que ali o Senhor se dignou operar para corroborar a fé dos fiéis, e ninguém dele duvida até ao dia de hoje. No dia do seu aniversário dez leprosos obtiveram a graça do baptismo, tendo neles sido cumprido o sacramento do baptismo: carregados em lençóis, pois não podiam ser tocados pelas mãos, cada um deles alcançou uma tal saúde que no género humano nunca tal beleza se mostrara.
Ouviu-se então uma voz do céu que dizia:
— A fé do dilectíssimo Julião tudo isto mereceu, e maiores coisas do que estas merecerá.
E, na verdade, nesse mesmo dia naquele lugar venerável cegos são iluminados, demónios são afugentados, leprosos são purificados — não só ali, mas também onde quer que em nome de Cristo se erga uma basílica de São Julião.
Glória a Cristo que é fiel nas Suas palavras e tamanha glória presta aos seus santos, que reina com o Pai e o Espírito Santo na Trindade da vida sempiterna por todos os séculos dos séculos. Amen.
A vida do mártir Julião,
nobilitada pelo amor de Cristo
desprezando as grandezas do mundo,
quer alcançar do Céu a morada.
Ordenam-lhe os pais
que aceite o casamento:
nem ao pai resistiu
nem a Deus foi desobediente na alma.
Consultado o Autor da Luz,
inspira-lhe que cumpra as ordens:
feliz fica seu pai,
e de Basilissa pede-se a mão.
Juntam-se iguais na fé,
celebram-se núpcias celestes:
mas eles com a melodia do coração
pedem ser queimados nos rins.
Ao entrarem no quarto,
um odor de rosas se derrama:
consente a virgem manter
intacta a união.
Ele, preso em Antioquia,
sendo governador Marciano,
no corpo todo é torturado,
mas um olho cego ele renova.
Orando ele, destruídos são
também os ídolos falaciosos.
Ressuscita Anastásio,
converte-se Celso também.
Enchem cubas com estopa
de arder, pez e betume:
também dali saem ilesos
e desfazem os templos arrasados.
Já o rapaz ganha a mãe,
torna-se o filho pai da mãe:
filho de um segundo
nascimento, a mãe regenera.
Lançado ao anfiteatro,
acaricia-o um leopardo.
Depois, atingido por um golpe,
é levado em glória à morada celeste.
Glória ao Deus Pai
e ao Seu Filho único
e ao Espírito Santo
pelos séculos sempiternos.